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13.5.13

O Jardim do Hortêncio


Quando voltei para Fortaleza, em 2002, era um estrangeiro na minha própria terra - mal sabia falar o dialeto nativo. Cedo, fui conhecer o que havia de atraente na Praia de Iracema, ao redor do Centro Dragão do Mar. Existia ali um restaurante de comida mediterrânea - assim constava no cartão de visitas - chamado Bali's Garden, onde, hoje, acredito, seja uma igreja evangélica. Parecia classudo, a começar pelo nome. Acompanhado de minha irmã, à porta do Bali's, avistei pela primeira vez um pianista da noite em seu ofício. Restaurante praticamente vazio, e eu, aficionado por piano, fui-me aproximando até que, entrando com o pé direito, distingui ali a melodia de Garota de Ipanema. Foi a melhor recepção que podia ter. Antes do piano, poltronas compunham uma espécie de antessala do restaurante; por ali fiquei tempo o bastante para que o maitre, receptivo porém incomodado, viesse tentar acolhida em uma das mesas, ou descobrir se esperava meus pais. Não tenho na memória o que aconteceu primeiro: se falei que estava apenas ouvindo o piano, ou se fui convidado a ver mais de perto o instrumento sendo acarinhado por um senhor de testa calva e nariz comprido que percebeu toda a movimentação.

O pianista Hortêncio, em foto do
arquivo pessoal de Felipe Adjafre.
Intervalo entre bossas e trilhas de cinema, fiz contato verbal; atraí a atenção do pianista que conversava como se não estivesse com as mãos trabalhando. Sotaque paulista, alma receptiva, foi assim que conquistei seus minutos de descanso para uma conversa regada a refrigerante por conta da casa - aliás, do maitre que botou os olhos em cima de minha irmã. E ali descobri que o pianista era o senhor Hortêncio, 70 e tantos anos, vindo de São Paulo por opções muito pessoais. Havia sido músico nos "inferninhos" e boates paulistas, onde crooners e trios animavam bailes noturnos na grande capital. Trabalhou nas mesmas casas que Pedrinho Mattar [que, em 2002, ainda tinha um programa de TV na Rede Vida chamado Pianíssimo, com mais de dez anos no ar].

A filha do senhor Hortêncio casou-se com um rapaz que, salvos os meus enganos, era cearense. Veio a primeira cria e, rumo ao Ceará, acabou arrastando o pai que abdicou do [talvez iminente] sucesso aproveitado pelo colega Pedrinho, durante décadas registrado em discos, programas de rádio e televisão. Seu Hortêncio foi o primeiro contato que tive com o piano, mesmo sem tocá-lo. Foi a primeira vez que alguém me ofereceu - a correr um tremedo risco - as teclas para uma "canja", imediatamente recusada por motivos óbvios.

Voltei ao Bali's acho que duas vezes mais. O interesse do maitre por informações sobre minha irmã ainda rendeu-me muitos guaranás por conta da casa, até que o restaurante fechou por não estar adequado a tantas coisas, inclusive, ao poder aquisitivo da maioria dos visitantes do Dragão. Fechou e fiquei órfão de pianista.

Reencontrei Hortêncio muitos anos depois, cumprindo horários em outro restaurante, em área mais nobre da cidade. Ali, a conversa foi muito curta e acredito que ele tenha demonstrado mais gentileza que boa memória, ao receber-me outra vez tão bem.

Este texto não é à toa, meus caros. Hoje, 11 anos depois, descobri, por total acaso, que Hortêncio Alves de Carvalho partiu em Novembro do ano passado, dia 17, e de forma trágica.

Aquela figura meio-mítica que nasceu no Bali's Garden continuará entre as minhas melhores histórias.

 
Vídeo de 2009. Hortêncio em São Paulo, acompanhando a sobrinha
na canção "Ronda" (P. Vanzolini). Nada próximo do piano de cauda que vi
e ouvi no Bali's. É o único registro em vídeo encontrado na internet.

2 comentários:

  1. Que texto delicado, Richell! E vou "dar uma canja" na sua história:
    Muitos anos após - fazia tempo que Hortêncio não vinha a São Paulo - ele veio visitar os parentes e amigos. Pediu para ir ao tradicional bairro do Bixiga onde, numa típica cantina italiana, encontraria um velho amigo, também pianista.
    Ocorreu que era folga do artista. Ao se identificar com o substituto, foi convidado a dar uma "canja". Sempre modesto, não aceitou a princípio. Mas, sabendo que eu gostava de cantar, disse que iria, se eu topasse.
    Subimos no palco acanhado e ele dominou os teclados com classe. Fiz o que pude, visivelmente emocionada. jamais havia cantado com ele antes.
    Pensamos em nos apresentar no casamento de seus dois netos (que aconteceria num mesmo dia). Bobeei, não deu. Prova de que nada se deve deixar pra depois. Hortêncio se foi e de toda a sua a carreira musical, restaram dois clipes, este postado acima e um outro em que interpreta Ouça (era muito fã de Maysa).
    http://youtu.be/zv0ex3qWzjg
    Ainda bem que as redes sociais nos permitem esses registros. Em nome da família, agradecemos por compartilhar!

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    1. Regina, estou muito alegre com o seu comentário. Feliz por essa postagem ter chegado onde chegou. O texto é a exteriorização desta memória que levo em lugar especial.
      Um grande abraço e muito obrigado.

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