Quando voltei para Fortaleza, em 2002, era um estrangeiro na minha própria terra - mal sabia falar o dialeto nativo. Cedo, fui conhecer o que havia de atraente na Praia de Iracema, ao redor do Centro Dragão do Mar. Existia ali um restaurante de comida mediterrânea - assim constava no cartão de visitas - chamado Bali's Garden, onde, hoje, acredito, seja uma igreja evangélica. Parecia classudo, a começar pelo nome. Acompanhado de minha irmã, à porta do Bali's, avistei pela primeira vez um pianista da noite em seu ofício. Restaurante praticamente vazio, e eu, aficionado por piano, fui-me aproximando até que, entrando com o pé direito, distingui ali a melodia de Garota de Ipanema. Foi a melhor recepção que podia ter. Antes do piano, poltronas compunham uma espécie de antessala do restaurante; por ali fiquei tempo o bastante para que o maitre, receptivo porém incomodado, viesse tentar acolhida em uma das mesas, ou descobrir se esperava meus pais. Não tenho na memória o que aconteceu primeiro: se falei que estava apenas ouvindo o piano, ou se fui convidado a ver mais de perto o instrumento sendo acarinhado por um senhor de testa calva e nariz comprido que percebeu toda a movimentação.
O pianista Hortêncio, em foto do arquivo pessoal de Felipe Adjafre.
Intervalo entre bossas e trilhas de cinema, fiz contato verbal; atraí a atenção do pianista que conversava como se não estivesse com as mãos trabalhando. Sotaque paulista, alma receptiva, foi assim que conquistei seus minutos de descanso para uma conversa regada a refrigerante por conta da casa - aliás, do maitre que botou os olhos em cima de minha irmã. E ali descobri que o pianista era o senhor Hortêncio, 70 e tantos anos, vindo de São Paulo por opções muito pessoais. Havia sido músico nos "inferninhos" e boates paulistas, onde crooners e trios animavam bailes noturnos na grande capital. Trabalhou nas mesmas casas que Pedrinho Mattar [que, em 2002, ainda tinha um programa de TV na Rede Vida chamado Pianíssimo, com mais de dez anos no ar].
A filha do senhor Hortêncio casou-se com um rapaz que, salvos os meus enganos, era cearense. Veio a primeira cria e, rumo ao Ceará, acabou arrastando o pai que abdicou do [talvez iminente] sucesso aproveitado pelo colega Pedrinho, durante décadas registrado em discos, programas de rádio e televisão. Seu Hortêncio foi o primeiro contato que tive com o piano, mesmo sem tocá-lo. Foi a primeira vez que alguém me ofereceu - a correr um tremedo risco - as teclas para uma "canja", imediatamente recusada por motivos óbvios.
Voltei ao Bali's acho que duas vezes mais. O interesse do maitre por informações sobre minha irmã ainda rendeu-me muitos guaranás por conta da casa, até que o restaurante fechou por não estar adequado a tantas coisas, inclusive, ao poder aquisitivo da maioria dos visitantes do Dragão. Fechou e fiquei órfão de pianista.
Reencontrei Hortêncio muitos anos depois, cumprindo horários em outro restaurante, em área mais nobre da cidade. Ali, a conversa foi muito curta e acredito que ele tenha demonstrado mais gentileza que boa memória, ao receber-me outra vez tão bem.
Este texto não é à toa, meus caros. Hoje, 11 anos depois, descobri, por total acaso, que Hortêncio Alves de Carvalho partiu em Novembro do ano passado, dia 17, e de forma trágica.
Aquela figura meio-mítica que nasceu no Bali's Garden continuará entre as minhas melhores histórias.
Vídeo de 2009. Hortêncio em São Paulo, acompanhando a sobrinha
na canção "Ronda" (P. Vanzolini). Nada próximo do piano de cauda que vi
e ouvi no Bali's. É o único registro em vídeo encontrado na internet.
6.5.13
E aí o tempo é indomável.
Em três anos, muitas coisas mudam. Em dois anos, muitas coisas mudam. Em um ano, muitas coisas. Em seis meses, algumas coisas mudam. Em um mês, pouca coisa. Em um dia, a coisa muda.
E pensar que onde rasgamos noites reunidos, abraçados, esfregando-nos delicadeza e amizade, hoje nada mais é que outro lugar ou arremedo. À mesma mesa em que dispusemos a carne a as almas, os copos e as mãos, há chaveiros de carrões, cigarros caros e gargalhadas ao custo de uma ameixa.
Os disputados centímetros quadrados, hoje, estão assim desoladores. O chão acimentado, as velas apagadas, os rostos vazios ao redor de três ou quatro bolsinhas de grife. E pensar que foi aqui que comemos alegria e bebemos novidade, todos juntos.
Éramos poetas, atores, músicos, artesãos, compositores, figurinistas, funcionários públicos, químicos, advogados, jornalistas, cantores, professores sob a mesma luz, fugindo das goteiras de Abril sem fadiga.
No tempo mora a correnteza que carrega tudo e nos força a engolir a saudade.
Muito contente em ter sido citado pelo amigo e gênio-compositor Eugênio Leandro, em seu artigo especial para o Jornal O POVO do domingo, dia 31.03.2013. Ele escreve sobre a nova safra de compositores, cita nomes de gente muito inventiva, abraça muitos amigos bons. Clique aqui para ler o artigo, na íntegra.